Se a
humanidade considera diabólico algo capaz de enganar e destruir o que a
natureza levou milhões de anos para construir, ou na visão da religião, o que o
próprio Deus com suas mãos elaborou então a comparação se torna pertinente. As
mais antigas descrições do câncer datam do século 25 A. C. no Egito. Desde
então o ser humano vem mostrando interesse em descobrir uma forma capaz de
cessar com essa doença, parte da sua própria história.
Galeno,
um influente médico do século 2 D. C. fez mais de 500 cirurgias para retirada
de tumores, portanto, tinha autoridade suficiente para falar sobre o assunto
quando disse: “o melhor a se fazer em um caso de câncer é... nada”. É claro que
naquela época só se vislumbrava a retirada do problema pela raiz como única
chance de cura, como se fosse simples assim. Mas também é verdade que mesmo nos
dias de hoje a conclusão de Galeno é compartilhada por seus companheiros de
profissão.
Durante
a evolução as células tiveram que desenvolver mecanismos que as impedissem de
ceder a sua demasiada fome de replicação, possibilitando o crescimento
organizado dos mais diferenciados tipos celulares em uma perfeita harmonia, a
vida complexa. Um dos frutos da mágica evolutiva somos nós seres humanos, agora
vítimas de fatores desencadeantes de alterações nos mecanismos naturais que
deveriam dar conta de impedir o crescimento celular desenfreado.
Os
tumores, de fato, podem prevalecer diante das defesas competentíssimas do
organismo, e mais, tira de letra. Imagine o Sistema Imunológico (SI) do
organismo, com suas células de defesa como macrófagos, neutrófilos e várias outras,
funcionando como um exército com milhões de soldados alertas e dispostos a nos
defender. As células geneticamente modificadas tem a capacidade de sucumbir a
ação dos defensores, sobressaindo-se diante deles, uma vez que foram originadas
de uma única célula antes normal que passou a multiplicar-se sem o controle
natural. Resistem, e como se fosse uma vida à parte, lançam mão de artimanhas
egoístas do ponto de vista fisiológico que constituem a patologia em si.
A angiogênese
é a formação de novos vasos sanguíneos, e o tumor possui a capacidade de
estimular essas formações ao seu redor, o que lhe dá condições de manter sua
taxa mitótica elevada e alimentar as células cancerígenas que consomem muito
mais nutrientes do que as células normais, que morrem cedo em comparação com as
do tumor, e também por isso não se multiplicam tanto. Em um contato direto com
um dos soldados do SI as células alteradas o matam ou simplesmente não são
afetadas. Outra característica bastante infeliz é a capacidade de motilidade
(movimento) observada nas células cancerígenas, isso multiplica seu poder de
infiltração nos tecidos. Bom seria se o tumor permanecesse apenas como um
tumor, mas este tecido pode liberar algumas de suas células para outras partes
do corpo, seja por incisão direta (capacidade de um tumor de penetrar e destruir
um tecido adjacente), metastásica (ligação a estruturas e locais distantes) ou disseminação
hematogênica (veias ou artérias). As células do tumor lançam proteínas em tecidos
vizinhos que ordenam que essas células também assumam as mesmas carcterísticas.
Isso não soa mesmo como algo divino.
A
história da luta contra o câncer prova que o foco sempre foi atacar a massa tecidual
resultante da proliferação descontrolada numa medida desesperada, e nunca restabelecer
os fatores de controle de crescimento naturais. Um deles é o gene p53,
reconhecido como um fator que freia o desenvolvimento celular, um dos frutos da
evolução que garante o equilíbrio no desenvolvimento multicelular. E esse gene com
alterações, assim como o poder mitótico ampliado e as proteínas mensageiras do
tumor são alvos de novas pesquisas de medicamentos, pois remédios mais
específicos para esses fatores tem mais chances de obterem um resultado melhor,
além de serem mais seletivos e por isso preservarem mais os tecidos normais e consequentemente,
o paciente. Um alento para os doentes.
O
poder diabólico atribuído ao câncer é justificado talvez pelo medo que o ser
humano ainda tem dessa doença. Aliás, doença? Não seria apenas um fenômeno de
proliferação anormal do próprio corpo? Nem mesmo isso parece bem claro. A
complexidade envolvida vai muito além do físico e do genético, é vida. É como
se para destruir o câncer nós precisássemos primeiro entender o que faz a vida,
do que é feita. E isso, desculpem o pessimismo, mas, não creio ser possível. A
saída então é direcionar os estudos científicos a fim de que um dia possamos
comparar o câncer a doenças crônicas como o Diabetes e a Hipertensão, que podem
ser controlados com fármacos e uma boa dose de boa vontade própria. O câncer,
embora seja diferente do resto do corpo, é vivo, é vida, não precisa mais ser
algo do diabo, nem sinônimo de morte.